terça-feira, 29 de julho de 2014

A Morte Vem das Sombras

Sobre uma pequena elevação, Kilt podia ver o outro centauro. À espreita de uma caça, ele não tinha se dado conta de que estava também sendo observado. Era quase tão jovem quanto Kilt, mas seu semblante, severo e tenso, poderia fazê-lo parecer ter anos mais que ele. Era a primeira participação de Urias num grupo de caça e ele rogava a Az’hur que guiasse sua lança para o alvo. O caçador não podia ver o animal na mata cerrada, mas percebia a proximidade da criatura graças a sua audição extremamente aguçada, antevia o momento em que se encontraria com a presa.

Na pele de Kilt, Gabriela se posicionou melhor para acompanhar o desfecho. O seu avatar ainda não tinha permissão para participar de caçadas, de modo que não podia se aproximar muito. Essa restrição lhe era oportuna, porém. Depois de sentir a morte do centauro Beron, ela hesitava em envolver-se novamente em cenas de ação daquele jogo estranho.
Voando em círculos, poucos metros acima, Michel tinha outras sensações. Extasiado, ele deslizava sobre o vento. Ao ver o personagem de Gabriela logo abaixo pensou em dar um voo rasante sobre ela, mas percebeu que sua atenção estava voltada para algo que ocorria poucos metros à frente. Ele não tinha as mesmas conexões mentais que Gabriela possuía com Kilt, de modo que não teria como saber do que se tratava Todavia, isso não era necessário para perceber que ambos estavam para se envolver nos acontecimentos.
Oculto pela densa folhagem e as sombras do crepúsculo, o enorme quadrúpede refreava sua inquietação ao perceber a proximidade do caçador. Era um herbívoro macho e adulto, semelhante a um búfalo. Apesar de encontrar-se na plenitude de sua força e vigor, teria preferido evadir-se, mas o instinto lhe dizia que o confronto seria inevitável. Então se preparou para investir contra o caçador. Baixou a enorme cabeça com os chifres apontados para o seu oponente e esperou o derradeiro momento com o trovejar da própria pulsação a ecoar em seus ouvidos.
Um leve farfalhar das folhagens alertou o centauro que a presa não se deixaria abater facilmente. Tanto melhor. Uma luta justa era tudo que poderia desejar na sua iniciação em combate. Isso marcava sua passagem da adolescência despreocupada para o grupo de caçadores e guerreiros, a elite na estrutura social daquele clã de centauros. Provar seu valor em combate era o único modo de escapar do destino reservado aos artesãos e coletores de frutas e sementes: prover o grupo e contar aos jovens as façanhas dos guerreiros.
Ele havia se preparado para esse momento praticamente desde os primeiros anos de vida, quando foi um dos escolhidos por Iras, o mestre de armas. Ele era o mentor dos maiores guerreiros da história recente de Antária. Eram tão poderosos, que só a magia podia suplantá-los. Fazer parte desse grupo representava o maior sonho dos jovens, mas poucos eram escolhidos pelos mestres de armas. Anualmente, uma competição realizada no início da primavera dava início ao rigoroso processo de seleção para a academia militar.
Os melhores participantes de cada prova eram atentamente observados, mas não bastava ser um vencedor. Os mestres valorizavam a tenacidade e a força de vontade demonstrada pelos competidores. Buscavam aqueles que podiam superar a dureza dos treinamentos e tinham no olhar o brilho especial que só os espíritos indômitos possuíam. Ser um dos escolhidos era uma grande honra. Sobretudo para suas famílias, que ganhavam em prestígio e força política nas diversas comunidades de centauros espalhadas pelas planícies de Antária.
Urias não pensava apenas no seu próprio triunfo. Honrar o seu mestre era o primeiro dever de um jovem guerreiro e ele assim o faria. O troféu daquela caçada seria oferecido a Iras, no momento em que o seu grupo de caçadores voltasse a se reunir em torno do líder. Com isso em mente, ele preparou-se para o ataque.
Ao ver o adversário erguer a lança, o herbívoro bufou e arremeteu confiante na sua couraça para protegê-lo daquela ameaça. Quase duas toneladas de força bruta e fúria dispararam em direção do centauro. Mas Urias empinou e se deslocou para o lado. Rodopiou no ar, num movimento quase impossível para o seu corpo. Em ato contínuo, usou o próprio giro como alavanca e desfechou o golpe, que acertou na junção das placas que protegiam o pescoço do animal. A lança serrilhada penetrou na carne e rompeu uma artéria. O sangue jorrou com força do ferimento, enquanto o animal tombava para frente levado pelo impulso de sua arremetida, arrastando arbustos e cipós, até parar de forma grotesca ao chocar-se com o tronco de uma grande árvore. Arquejou por um doloroso momento, até que o centauro se aproximou empunhando a espada e desfechou o golpe fatal. A lâmina penetrou entre as costelas e alcançou o coração. O animal ficou imóvel, com os olhos rapidamente embotados pela morte. O Combate teve um desfecho rápido e sem contemplação, sem lamentos ou hesitações. Cada um dos antagonistas cumprira o papel que lhe cabia no drama da vida em Az’hur.
O centauro soltou um grito de júbilo. Estava feito. Com uma referência ao oponente que jazia a seus pés, ele fez uma breve oração ao seu deus em agradecimento pela vitória e preparou-se para receber os companheiros, depois de soprar sua trompa para chamá-los. Outra trompa soou ao longe e indicava que tinha sido ouvido.
Ele mal podia esperar para oferecer o animal morto ao seu mestre de armas, que chefiava o grupo de caçadores. Assim era a tradição do primeiro combate. Ele deveria caçar e matar a presa escolhida, para depois compartilha-lo com o grupo. Ao líder caberia dirigir o esquartejamento e retirar os chifres, dá-lo ao seu discípulo como troféu de combate e ungi-lo com o sangue do animal abatido. Oferecer o troféu de volta ao mestre seria uma prerrogativa do caçador. Um sinal de respeito e humildade, qualidades muito apreciadas na hierarquia militar dos centauros. Assim terminaria a primeira vida do jovem Urias e iniciar-se-ia outra que, se os deuses assim desejassem, seria repleta de batalhas e glórias a serem cantadas pelos trovadores de sua aldeia.
Do alto Bibbo percebeu primeiro e lançou um guincho de advertência. Algo havia surgido por entre as sombras do crepúsculo e avançava furtivo em direção ao caçador. Kilt tentou avisá-lo, mas o receio de interferir em seu momento de glória o conteve.
A noite chegou e Urias mal percebeu isso, absorto que estava em seus devaneios juvenis. Tampouco percebeu que a mata estava estranhamente silenciosa depois de ter ouvido o guincho de uma ave que voava em círculos sobre sua cabeça. Aquilo não era normal. A mata deveria estar repleta dos sons dos animais noturnos. De repente ele parecia ser o único ente vivo na escuridão da floresta. Quando se deu conta de que havia alguma coisa errada era tarde demais. Algo pulou sobre ele e partiu sua espinha dorsal. O centauro desabou no chão ainda consciente o suficiente para perceber as monstruosas garras que dilaceravam sua garganta e puxavam o pescoço para trás. Com um safanão, o demônio arrancou sua cabeça e a arremessou para longe, indiferente à vida que se esvaiu. O que desejava vinha da morte do centauro. Seu espírito ceifado foi consumido com o corpo ainda quente. Urias havia deixado

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